SÓ DUAS PERGUNTAS
Tomislav R. Femenick
(www.tomislav.com.br)
O Padre
Jahannes Simon Vondel tinha terminado de rezar as vésperas, a oração do final
da tarde e começo da noite, quando o telefone da sacristia da pequena igreja,
da pequena cidade do interior, tocou estridentemente. Era a enfermeira de Dona Lucrecia,
viúva de Pedro Correia Fernandes, rico proprietário e chefe político,
recentemente falecido. Queria que ele fosse urgente ao casarão, pois a doente
tinha piorado muito nas últimas horas e pedido para se confessar, mas só com o
Padre Vondel.
Mesmo com
quase setenta anos, o padre holandês cultivava o hábito de andar de bicicleta, até
porque as parcas receitas da paróquia não lhe permitiam o luxo de um carro. Pedalando
pelas ruas mal iluminadas, ele ia reavivando suas lembranças sobre Dona
Lucrecia. Há trinta anos, quando ele chegou na cidade, Lucrecia era a grande
dama local. Promovia as melhores festas, era patronesse de obras beneméritas e
mãe de somente uma filha pequena. Hoje a filha era a Dra. Amélia Fernandes
Oliveira, casada com o Dr. Paulo Dutra Oliveira, ambos médicos e donos do
hospital local. Seu Pedro Correia tinha
morrido misteriosamente e a viúva, embora tratada permanentemente pelo genro, vivia
em uma cama e tinha uma enfermeira e uma empregada como únicas companhias,
naquela residência tão grande.
Quando o padre
chegou ao sobrado, a porta estava aberta e as luzes da escada acesas. Pensando
que estavam a sua espera, subiu em direção ao quarto da dona da casa e
encontrou uma cena surpreendente e horripilante. O recinto estava iluminado
apenas por duas grandes velas, mas dava para se ver um pentagrama desenhado na
parede, atrás e acima da cabeceira da cama, e uma grande quantidade de sangue
esparramado pelo chão. O corpo da enfermeira estava aos pés da cama, com a garganta
cortada, e o cabo de uma faca de prata se projetava do abdome de Dona Lucrecia.
Tudo levava a crer que teria havido um ritual macabro, no qual as duas teriam
sido sacrificadas. Foi ainda meio desorientado que o reverendo ligou para a
polícia.
O delegado da
cidade era um advogado que não mais exercia a profissão e devia a sua nomeação a
Pedro Correia Fernandes. Talvez o delegado tenha sido o maior amigo do casal.
Era o padrinho de Amélia; padrinho de batismo, de formatura e de casamento. Até
brincavam: se ele não fosse o único tri-padrinho do mundo, com certeza era o
único da cidade. Pouco depois de o delegado chegar ao casarão, a cidade toda já
sabia da notícia e para lá se dirigia. A filha, desesperada, estava sendo consolada
nos braços do Padre. Dr. Paulo, seu marido, esbravejava contra “esses fanáticos”
e dizia que o crime somente poderia ser obra do Sebastião das Cebolas, o Pai de
Santo local. Sebastião foi preso e transferido para uma delegacia da capital,
pois se ficasse na cidade seria linchado.
Pelos outros
presos, o Pai de Santo ficou sabendo que o escrivão
da delegacia era o Pereira, aquele que já tinha resolvido alguns casos
desconcertantes. Conseguiu falar com ele e expor seu problema: estava preso,
porém não era o autor do crime. Pereira conhecia o Padre Vondel e Dona
Lucrecia, pois era de um lugarejo próximo, e resolveu investigar. Foi rever o
reverendo holandês e a cidade. Por cortesia foi fazer uma visita ao delegado,
oportunidade em que se inteirou dos detalhes e do andamento das investigações. A
enfermeira era de fora e tinha sido indicada pelo genro da doente. O delegado
já tinha certeza que Sebastião das Cebolas não tinha nada a haver com o caso;
só o mantinha preso para evitar que o povo o linchasse.
Foi ver a cena
do crime e visitar o Padre Vondel, quando soube que Dona Lucrecia nunca havia
sido muito religiosa, mas, à medida que a doença progredia, ela rezava mais e
mais e, às vezes, ia assistir missa, mesmo que para isso fosse preciso ir de
cadeira de roda. Porém nunca tinha se confessado. O Padre também achava que o
Pai de Santo não tinha nada com a história. Conversando com outras pessoas,
soube que o inventário de Pedro Correia Fernandes ainda não tinha sido
realizado e que a saúde financeira do hospital da filha e do genro ia muito mal.
Conversando com a velha Manuela, empregada do casarão dos Fernandes há mais de
quarenta anos, inteirou-se de um segredo: Dona Lucrecia, logo que se casou,
teve um caso com um advogado que tinha chegado na cidade e que hoje é o
delegado. Desse caso nasceu Amélia. Sentindo a aproximação da morte, talvez
tenha sentido a necessidade de confessar o pecado.
Daí, foi
relativamente fácil resolver o caso. Foi só responder duas perguntas. Quem
ganhava com a morte da senhora? Sua filha e seu genro, que estavam praticamente
quebrados, com as dívidas do hospital.
Quem perderia se fosse provado que ela não era filha do velho Pedro? Os
mesmo, pois Pedro e Lucrecia eram casados em separação de bens. Foi só apertar
o genro. No começo negou, depois confessou tudo. Tinha mandado fazer exame de
DNA da mulher e do delegado (atestaram pai e filha), tinha mandado matar o
sogro e, ele mesmo, matou a sogra e a enfermeira. Primeiro a sogra e depois a
enfermeira, após forçá-la a ligar para o padre.