Luis Greco e Alaor Leite
Fatos e mitos sobre a teoria do
domínio do fato
A teoria não condena quem, sem ela, seria
absolvido. Não dispensa a prova da culpa nem autoriza que se condene com base
em presunção
Desde
o julgamento do mensalão, não há quem não tenha ouvido falar na teoria do
domínio do fato. Muito do que se diz, contudo, não é verdadeiro.
Nem
os seus adeptos, como alguns ministros do Supremo Tribunal Federal, nem os que
a criticam, como mais recentemente o jurista Ives Gandra da Silva Martins,
parecem dominar o domínio do fato.
Talvez
porque falte o óbvio: ler a fonte, em especial os escritos do maior arquiteto
da teoria, o professor alemão Claus Roxin. Mesmo os técnicos tropeçam em
mal-entendidos, de modo que o público merece alguns esclarecimentos.
Primeiro,
um fato. Simplificando (vide nosso estudo "O que é e o que não é a teoria
do domínio do fato", RT 933, 2013, p. 61-92), a teoria do domínio do fato
define quem é o autor de um crime, em contraposição ao mero partícipe. O autor
responde por fato próprio, sua responsabilidade é originária. Já o partícipe
responde por concorrer em fato alheio --sua responsabilidade é, nesse sentido,
derivada ou acessória.
O
Código Penal brasileiro (art. 29 caput), embora possa ser compatibilizado com a
teoria do domínio do fato, inclina-se para uma teoria que nem sequer distingue
autor de partícipe: todos que concorrem para o crime são, simplesmente,
autores.
A
teoria tradicional diz que fatos alheios também são próprios; emprestar a arma
é matar.
Para
o domínio do fato, porém, o autor, além de concorrer para o fato, tem de
dominá-lo; quem concorre, sem dominar, nunca é autor. Matar é atirar; emprestar
a arma é participar no ato alheio de matar.
Na
prática: a teoria do domínio do fato não condena quem, sem ela, seria
absolvido; ela não facilita, e sim dificulta condenações. Sempre que for
possível condenar alguém com a teoria do domínio do fato, será possível
condenar sem ela.
Passemos
aos mitos. A teoria não serve para responsabilizar um sujeito apenas pela
posição que ele ocupa. No direito penal, só se responde por ação ou por
omissão, nunca por mera posição.
O
dono da padaria, só pelo fato de sê-lo, não responde pelo estupro cometido pelo
funcionário; ele não domina esse fato --noutras palavras, ele não estupra, só
por ser dono da padaria.
Parece,
contudo, que, em alguns dos votos de ministros do STF, o termo "domínio do
fato" foi usado no sentido de uma responsabilidade pela posição. Isso é
errôneo: o chefe deve ser punido, não pela posição de chefe, mas pela ação de
comandar ou pela omissão de impedir; e essa punição pode ocorrer tanto por fato
próprio, isto é, como autor, quanto por contribuição em fato alheio, como
partícipe.
A
teoria do domínio do fato não é teoria processual: ela nem dispensa a prova da
culpa, nem autoriza que se condene com base em presunção --ao contrário do que
se lê no voto da ministra Rosa Weber, que fala em uma "presunção relativa
de autoria dos dirigentes", e na entrevista de Ives Gandra.
Sem
provas, ou em dúvida, absolve-se o acusado, com ou sem teoria do domínio do
fato.
A
teoria tampouco tem como protótipos situações de exceção, como uma ordem de
Hitler. Isso é apenas uma parte da teoria, talvez a mais famosa, certamente a
mais controvertida, mas não a mais importante.
Um
derradeiro fato. A teoria do domínio do fato não pode ter sido a responsável
pela condenação deste ou daquele réu. Se foi aplicada corretamente, ela terá
punido menos, e não mais do que com base na leitura tradicional de nosso Código
Penal. Se foi aplicada incorretamente, as condenações não se fundaram nela, mas
em teses que lhe usurparam o nome.
Não
se deve temer a teoria, corretamente compreendida e aplicada, e sim aquilo que,
na melhor das hipóteses, é diletantismo e, na pior, verdadeiro embuste.
LUIS GRECO, 35, e ALAOR LEITE, 26, doutor e
doutorando, respectivamente, em direito pela Universidade de Munique
(Alemanha), sob orientação de Claus Roxin, traduziram várias de suas obras para
o português