sábado, 24 de agosto de 2013

Médicos brasileiros contra médicos estrangeiros: a luta continua.

Uma pequena contribuição ao debate.
O DRAGÃO DA MALDADE DA ‘FALTA DE CONDIÇÕES’
CONTRA O SANTO GUERREIRO DO ‘REVALIDA’
Samuel Gueiros (Médico)
Entro no debate para jogar merda no ventilador.
E quem escreve? Bom, não tenho autoridade acadêmica mas experiencia de 35 anos no interior da amazonia e de mesmo assim ter vivido medicina em um país de primeiro mundo (Inglaterra, 1 ano), com uma Bolsa do Conselho Britânico. Medicina em Fortaleza, Residência no Rio, visitei e trabalhei em diversas cidades do interior da amazônia e conhecido a realidade de centenas de empresas e condições de trabalho e vida nessas diversas cidades também como auditor fiscal do Ministério do Trabalho. E que trabalhei como médico de sindicato, e de hospital publico de interior (Itaituba, Oriximiná, Juruti e Altamira, no Pará), professor de Medicina Legal da UFPA, Perito do IML  (em Santarém) e dono de clínica particular, porque não?
O DRAGÃO
Essa história de “falta de condições” é de uma hipocrisia gritante. Falta de condições existem  mesmo nas capitais, onde morrem pessoas todos os dias vítimas de descaso da medicina e de médicos, não se culpem só os dirigentes ou o Governo. Presenciei essa “falta de condições” em hospitais do Rio durante 2 anos de Residência. O primeiro impacto que tive foi no concurso para Bolsista do Ministério da Saúde onde lá encontrei meus nobres amigos Armando Negreiros e Paulo Negreiros. Na Reunião para definir onde se lotariam os novos médicos, todo mundo só queria os hospitais do centro do Rio. E nós, oriundos de Mossoró e Fortaleza,  particularmente eu que fazia Residência em Clinica Médica no Andaraí, fomos dos únicos a ir para o Hospital da Colônia Juliano Moreira, lá em Jacarepaguá, no fim do mundo, onde havia a maior necessidade de assistência médica e psiquiátrica mas que ninguem queria ir, mesmo sendo no Rio de Janeiro. Era um hospital típico “do interior” e por isso “não tinha condições de trabalho”. Ir pra Colônia era pagar mico. Lembro-me que eu e um colega de Niterói investimos na assistência clínica dos doentes mentais visto que, como crônicos, a maioria estava condenada ao tratamento até o fim da vida. Passamos a realizar exames clínicos e ginecológicos dos pacientes crônicos, rastrear hipertensão e diabetes e o maior impacto foi quando retiramos cacos de um copo quebrado dentro da vagina de uma paciente que sangrava e há dias apenas tomava antihemorrágicos e antipsicóticos. Sem um simples exame não dava pra saber nada, pois ela nada informava.
NA AMAZONIA
Ao   vir para o interior da amazônia, na década de 80, constatei em diversos locais condições de trabalho razoáveis para o exercício de uma medicina básica e em alguns casos até mesmo de medicina de alta complexidade como se vê há mais de 10 anos hoje nos hospitais regionais de Altamira e Santarém, inclusive com serviços de oncologia e UTI neonatal, considerados hospitais de excelência. Mas aqui no Pará, 80% dos médicos está aonde? Em Belém, claro, olhando o interior por cima dos ombros, achando que não tem condições de trabalho, entoando o coro dos descontentes com a cantilena do revalida, “denunciando” os riscos da população com os novos médicos, riscos com os quais nunca se preocuparam.
A CLINICA VARIG
Lembro-me que quando organizamos um pequeno hospital em Santarém em 1980, com apenas 3 médicos, dois ex-residente de hospitais do Rio, a nossa principal meta era acabar com a prática de que quando a coisa complicava, se encaminhava logo pra Belem (A Clínica VARIG). Procuramos botar a mão na massa, dar plantão fim de semana, funcionar o centro cirúrgico mesmo “sem condições” mas salvamos muitas vidas e o colega cirurgião chegou a fazer neurocirurgia com o auxílio de um colega neurocirurgião  que veio de Belem, com o paciente sendo operado em Santarém e sobreviveu. Com a pressão dos pacientes, das emergências, lembrei o quanto foi importante a residência para mim e principalmente para o meu colega cirurgião, e mais ainda a importância de estar alí, frente a frente com as doenças graves, e a nova aprendizagem empolgante que salvava vidas em situações que eu achava irrecuperáveis, como os casos do politraumatizado de um acidente aéreo, de um garimpeiro vítima de meningite, e outro de pancreatite, fora os surtos psicóticos tratados em hospital-geral, vendo na prática o que Franco Basaglia defendera em Trieste. O maior desafio para mim ao chegar no interior não foi só ganhar dinheiro mas me surpreender e querer fazer o mesmo que os colegas que aqui conheci, trabalhando com as chamadas “sem condições”, mas salvando de fato vidas, fazendo saúde pública, curando e reabilitando pessoas. Meu Deus, eu não sabia de nada, vindo do Rio e tantos colegas aqui sabiam tudo! Armando conheceu Dr. Pena, um baiano, o médico que fundou a primeira clínica particular do interior da amazônia, uma espécie de Albert Schweitzer da Amazonia, um verdadeiro professor itinerante de medicina.
O SANTO GUERREIRO REVALIDA
Outra falácia é essa história do “revalida”, quando sabemos do exército de incompetentes no país, de médicos mal formados, mal treinados, fazendo besteira em capitais e no interior, com ou sem condições. Se fossem aplicar o Revalida na medicina brasileira não ia passar nem a metade. Aliás, no Brasil provas de aferição de competência é sempre um desastre, está aí a OAB que não deixa mentir. Se o CREA entrar na briga, preparem-se para mais desabamentos.
RESERVA DE MERCADO
O que se constata é que os médicos brasileiros, a exemplo de quase todos os profissionais de nível superior, não querem ir pro interior, por puro preconceito e nojo. Ficamos anos e anos nas capitais, mas achando que o interior já era nosso. A Medicina brasileira se achava dona de verdadeiros “lotes improdutivos”, ou seja, o interior tava lá, era propriedade dos médicos brasileiros da capital, uma espécie de reserva de mercado, mas ninguem queria tomar posse, ninguem ia lá para plantar nada; deixavam que os “garimpeiros” da saúde fossem se arriscar no interior, fazer a sofrida “lavra manual” da medicina, à espera de num incerto futuro pudessem fazer a “lavra mecanizada”. Beneficiários de uma espécie de "Tratado de Tordesilhas" de araque, faziam medicina só nas capitais mas se sentindo donos da outra metade do país - os bandeirantes médicos que fossem atrás, que se fudessem.
Donos de sesmarias médicas, na verdade, se formam em universidades públicas e só querem fazer a medicina mecanizada, automatizada, particular. Querem ser apenas motoristas de artefatos fabricados pelo complexo industrial médico-hospitalar. Ninguem quer fazer consulta, exame, sujar a roupa de sangue, ir pra linha de frente, atender doente. Ninguém quer ter esforço de fazer uma anamnese ou diagnóstico, mas apenas se beneficiar deles. Nós médicos brasileiros, latinos, espertos, malandros, não temos vocação para Albert Schweitzer um anglosaxão pragmático mas idealista.
Achamos lindo os “médicos sem fronteira” e tem até médicos que vão pra esse projeto para voltar para as capitais e em coquetéis e reuniões de ONGs, em Ipanema, se orgulharem de dizer que já foram lá. Mas ninguem quer ir pra fronteira do Acre, fazer a medicina real, suja, de doentes brasileiros, porque na volta vai ter vergonha de dizer que esteve lá, que tratou de caboclos e índios. Médicos em Santarem do Projeto Saúde e Alegria se embrenharam nas matas da amazônia "sem condições" e hoje são reconhecidos internacionalmente, com reportagens no Fantástico e Globo Reporter.
Veja o que diz a wikipedia sobre Albert Schweitzer (“Em 1905 iniciou o curso de medicina, e seis anos mais tarde, já formado, casou-se e decidiu partir para Lambaréné, no Gabão, onde uma missão necessitava de médicos. Ao deparar-se com a falta de recursos iniciais, improvisou um consultório num antigo galinheiro e atendeu seus pacientes enfrentando obstáculos como o clima hostil, a falta de higiene, o idioma que não entendia, a carência de remédios e instrumental insuficiente. Tratava de mais de 40 doentes por dia e paralelamente ao serviço médico, ensinava o Evangelho com uma linguagem apropriada, dando exemplos tirados da natureza sobre a necessidade de agirem em beneficio do próximo”).
REVALIDA: UM NUREMBERB TUPINIQUIM
É uma tremenda hipocrisia essa de inventar justificativas toscas para investir contra médicos estrangeiros, vendo chifre em cabeça de cavalo, tentando ideologizar a discussão, dando uma de preocupados com a “saúde pública dos brasileiros” empunhando a espada do Revalida. Que até pode ter ideologia, que até podem ser espiões, incompetentes, o escambau. Mas não é esse o problema central. O problema é a falta de médicos.
Insisto que toda essa gritaria não passa de uma ciumada, de uma classe medica que até então achava que os “lotes improdutivos” de medicina lhe pertenciam por herança, e se formaram capitanias hereditárias de especialistas em todos os níveis, mas apenas nas capitais. Com a nossa herança patriarcal, aristocrática, não tivemos nenhum Tomé e Sousa ou Duarte Coelho da medicina. Tivemos médicos anônimos, que correram pro interior pra salvar vidas, que construiram clínicas, hospitais, que deram sobrevida a trabalhadores descamisados, a colonos hipertensos, a matronas diabéticas, a crianças verminóticas, situações para as quais uma simples consulta poderia salvar suas vidas. E esses médicos morreram anônimos, não fizeram parte da AMB ou do CFM.
Agora que médicos estrangeiros, de uma cultura muito mais progressista, da verdadeira medicina de família vem para cá, contemplando o que realmente estamos precisando, os especialistas entraram em panico, o complexo industrial médico-hospitalar entrou em parafuso pela perda de uma suposta clientela cativa que agora lhe escorre das mãos. Porque se a medicina de família prosperar desafia o complexo industrial médico-hospitalar, já denunciado por Ivan Illich na década de 70.
Os estrangeiros trazem uma medicina que não precisa de tomografia, nem de dopler, nem de imageologia sofisticada, apenas de simples consultas que podem salvar muito mais vidas. De simples procedimentos que reduzem a mortalidade infantil. De atitudes e gestos que salvam pessoas da desgraça eterna de uma doença cronica e aumenta a expectativa de vida. A medicina clínica clássica, que alicerçou a Semiologia e a Fisiopatologia, não foi a tomografia, nem o dopler, nem a ultrassonografia, foi a clínica (“clinos, leito”), tão repudiada, tão rejeitada pelos novos médicos que não olham para a cara do doente, mas passam meia hora olhando para uma imagem, para uma lâmina, para um microscópio, para um gráfico, para uma tabela, para uma bula de mais um medicamentos caríssimo e de eficácia duvidosa. Nada contra a tecnologia de ponta, que a uso diariamente. Mas o conceito de clínica soberana vai virando um lixo, é obsoleta, ridícula.
Mas não, os médicos brasileiros estão a inventar “riscos” inexistentes, a guerrear contra os 300 de Cuba, que os médicos de fora são uma ameaça maior do que ficar sem médico, ora paciência. O maior risco é a falta de médicos. Se abandonada está a população do interior, que diferença faria um médico mesmo de formação mais simples? Quanto incompetentes matam pessoas nas capitais, formados, especialistas neste país? Quantas faculdades já foram fechadas no Brasil pela falta de condições de ensinar medicina mas que muitos sairam graduados dessas escolas com um diploma 007?  Quanta merda eu mesmo já fiz e só aprendi com o exercício clínico com pacientes humildes e do interior? E quantas localidades se debatem com charlatães, curandeiros, pajés, mas o CFM e a AMB nunca fizeram nada, nunca se falou em risco para a população?
Pois é, não estamos falando de pajés ou curandeiros ou charlatães que estão vindo para o Brasil, mas de médicos, pelo amor de Deus.
Na Inglaterra, vi pessoalmente como os postos de saúde são de uma simplicidade franciscana, dá-se valor à Clínica, há uma real hierarquização, há um Sistema Único de Saúde de altíssima qualidade que funciona, mas no Brasil confundiu-se “evidencias” com tecnologia, e foda-se a clínica e a semiologia.
GELÉIA GERAL
E não é só com médicos esse comportamento, essa cultura de nojo do interior. E isso é assim com engenheiros, professores, é uma praga nacional. É a cultura do saque, latina, ibérica, que vem pro interior pra fazer um garimpo e depois voltar pra capital. Como Cortez no Mexico, arranca-se o coração do paciente e leva-se a prata para gastar no shopping da Corte. Os que falam nesses dragões e santos não querem desenvolver nada, ninguem que participar, ninguem quer trabalhar no pesado. Não há mentalidade progressista ou desenvolvimentista. Criou-se um preconceito do médico do interior, do médico caipira, que vai pro interior pra enricar e virar prefeito. Do estereótipo do cara que se diz que faz tudo mas não sabe nada. Ninguem quer pagar mico, ninguem quer sofrer gozação na capital por estar no interior. Mas se inventou esse dragão da maldade da “falta de condições”.
Como médico perito que avaliei centenas de candidatos ao serviço público de diversos níveis, médicos, engenheiros, professores, etc. que fizeram concurso nas capitais para vir para o interior, fui testemunha de invariavelmente, assim que chegam aqui começam a meter atestados médicos, e mil justificativas, a pedirem laudos de incapacidade, desonestos com o compromisso que assumiram ao entrar no serviço público, utilizando lobby político e o escambau para voltar para a capital.
A maioria dos médicos que fala em “falta de condições” e “revalida” nunca fez uma consulta em um posto de periferia do interior, quiçá da capital.
Leia abaixo a verdadeira análise da situação com a qual assinei embaixo e por favor me poupem de mandar emails com essa cantilena repetitiva de que seremos vítimas de espiões cubanos, de agentes do comunismo internacional, de danos aos brasileiros e não me convidem para ir às ruas com uma cartolina escrita Revalida;
Sou contra Dilma Roussef, detesto Lula, sou membro fundador do PSDB em Santarém, voto no Aécio, vomito contra o mensalão, mas trazer médicos de qualquer país para cá, é um avanço, infelizmente vai servir para engordar as burras do PT, pois a população que não tem chuva vai vibrar nem que seja com uma gota d’agua.
Assim como foi na abertura do mercado da informática e dos carros importados, os médicos estrangeiros vão impor vergonha na cara dos médicos brasileiros para trabalharem no interior e não se envergonharem ou terem nojo do resto do Brasil.
VERGONHA NACIONAL
E mais, vamos passar a maior vergonha quando os índices de saúde dessas localidades onde estão os médicos estrangeiros começarem a mudar, e aí eu quero ver neguinho falando em revalida, em riscos para a população, em “falta de condições”. E aí a medicina brasileira vai pagar o maior mico histórico.  E tem mais, provavelmente muitos médicos vão correr pro interior para aprender com esses médicos estrangeiros, e quem sabe aí percam o preconceito depois de matar a propria inveja. Médicos estrangeiros que aliás, estão estupefatos com a babaquice médica nacional de repudiá-los sob o hipócrita pretexto de “proteger a população”. Especialistas de 38 anos de medicina pública de Portugal e Espanha estão sendo tachados de incompetentes, sendo levados para o Revalida como se estivessem em Nuremberg. Vejam em seguida o exemplo de Tocantins.
Temos muitos médicos querendo ser Miguel Nicolelis, mas ninguem quer ser Carlos Chagas.

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