domingo, 1 de julho de 2012

A "guerrilha" de Catolé do Rocha.(II)


69 em Catolé do Rocha/PB - histórias que cruzam. Segunda parte: Combatentes da Liberdade


Imagem 02 – Turma concluinte do ensino básico no Colégio Dom Vital (Catolé do Rocha/PB, possivelmente em 1967)

Passagem pouco conhecida da história recente, a sequencia de fatos que culminou com a formação da chamada “Guerrilha de Catolé” merece estudos mais aprofundados. Além de descobrirmos histórias sobre essa breve tentativa de reação armada contra a ditadura militar no Brasil, entre outras, iremos encontrar um exemplo único de reação radical contra o conservadorismo político e cultural que dominava uma cidade no interior paraibano.
As origens desse insipiente movimento guerrilheiro podem ser encontradas na própria conjuntura da cidade. A tentativa de se iniciar um foco guerrilheiro foi resultado e momento ápice de várias outras agitações políticas. 

 

Como vimos, o Brasil e Catolé do Rocha/PB viviam momentos de autoritarismo e repressão durante a década de 60. Catolé do Rocha, em específico, historicamente sempre foi considerada uma cidade violenta, onde, para além disso, as oligarquias davam a linha da política local.
 Em contrapartida, desde os anos 50 Catolé foi progredindo no que diz respeito a educação escolar. Chegou nos anos 60 contando com cinco escolas, inclusive três com 2° grau: “Colégio Dom Vital, o Estadual, Escola Técnica Comercial, o das Freiras Alemãs e outro que era mantido por Frei Marcelino” (jornal TRIBUNA, 1991) Segundo esse jornal o Dom Vital era o único estabelecimento de ensino de 1° e 2° grau que funcionava sem receber recursos da Prefeitura. Esse colégio também possuía uma gráfica, fato que tem relação com os acontecimentos narrados, como veremos mais a frente.
Diretor do colégio Dom Vital nos tempos da nossa história era o potiguar Frei Marcelino de Santana, “(...) um elemento que sempre foi um pouco a esquerda (...) queria prestar um serviço comunitário, isto é, criar colégios, cursos profissionalizantes, mas não acompanhava o trabalho dele com esse processo de conscientização política.” (TRIBUNA, 1991) Para ele era necessário romper com a “mentalidade atrasada” que dominava Catolé.
Diferente portanto das gerações anteriores de catoleenses, a nova geração que era jovem na década de 60 teve acesso a influências diversas, com base em escolas que atendiam a uma diversidade e maior quantidade de pessoas (como o Dom Vital) e que também propiciavam o contato desses jovens com indivíduos que possuíam preferências políticas mais humanistas ou, de certa forma, de esquerda, como o próprio Frei Marcelino.
Em 1965 um fato contribuiu extraordinariamente para a formação política de uma parcela da juventude de Catolé do Rocha: a chegada de Luiz de Aquino, natural de Upanema/RN e que morava em Mossoró/RN quando da mudança à Paraíba. Chegou para ser bancário e logo em seguida assumiu também o posto de professor de história no Colégio Dom Vital.
Esse indivíduo, em Mossoró no Rio Grande do Norte, fazia parte do Centro Estudantil Mossoroense (C.E.M.), inclusive era secretário quando o prédio do C.E.M. foi ocupado por militares em abril de 1964; teve sorte pois quando chegava pela rua, viu de longe o aparato militar e prontamente retornou.
Foi tão forte a influência de Luiz de Aquino nos acontecimentos que em parte narramos que o jornalista Luiz Gonzaga Cortez, no jornal TRIBUNA (Natal/RN,1991), escreve:

O ex-professor de História e bancário Luiz Ferreira de Aquino Filho, no tocante a revolução cultural (não proletária) ou ao movimento popular desencadeado na cidade paraibana de Catolé do Rocha, na década de 60, é comparável ao professor de uma cidade italiana, personagem interpretado por Marcelo Mastroianni, do filme “Os Companheiros”, dirigido por Mário Monicelli. No filme (...) o professor chega na pacata e pequena cidade, entra em contacto com os operários que, mais tarde, provocam uma tremenda agitação por causa de uma greve num fábrica têxtil, sufocada por uma violenta repressão.(...)” (TRIBUNA, 1991)

Alguns depoimentos colhidos por Edmilson Júnior (ver fontes ao final da terceira parte...) junto aos participantes das agitações políticas ocorridas em Catolé do Rocha na década de 60, confirmam a importância que teve Luiz Aquino:

Num primeiro momento, o grande protagonista, incentivador e estimulador de tudo foi o Bancário e Prof. de história Luis Ferreira de Aquino. Possuía uma boa biblioteca. Ele fez nossa cabeça. Era um homem de uma cultura fabulosa; tinha uma formação erudita e   caracterizava-se pela dinamicidade e solidariedade. [grifo nosso](José Soares)

De fato a chegada do Professor de História Luiz de Aquino (que ficou na direção do Dom Vital enquanto Frei Marcelino foi fazer um curso nos Estados Unidos, entre 1966 e 1967) é apontado por todas as fontes que tivemos acesso como o fator preponderante para a disseminação de ideais  progressistas no meio de uma geração de jovens. Ele “fez a cabeça” da juventude.
Mas não foi só ele o responsável pela disseminação de uma “nova mentalidade” na cidade. Outros nomes “(...) como José Pinheiro de Medeiros, Simão Bolívar Vieira e outros foram de suma importância para o movimento daquela época, porque nos davam apoio logístico, fornecendo livros, proferindo palestras, escrevendo peças teatrais, etc.” (Neto de Boca Rica)
Com o crescimento relativo da cidade e a abertura de bancos, escolas e outras entidades, ocorreu entre finais de 50 e durante a década de 60 um certo “trânsito” de pessoas para Catolé, levando consigo pensamentos políticos diferentes daqueles que reinavam na cidade.
Outro jovem que chegou em 1965 foi Expedito Vieira de Figueiredo. Vibrava com Frei Marcelino. Candidatou-se a presidente do Centro Estudantil em 1966. Em 1967 recebeu um memorando do presidente do Banco do Nordeste, onde trabalhava, para que explicasse a homenagem que fizeram a Che Guevera por ocasião de sua morte. Para o jornalista Luiz Gonzaga Cortez, Expedito se tornou depois o “principal líder político contestador da oligarquia dominante.” Segundo o que nos consta, chegou a ser eleito vereador em 1968 (passagem que poderá ser tema de outro texto em específico...).
Além do contato direto com essas e outras influências, outro grande elemento ajudou na formação política e cultural dos jovens catoleenses: o rádio. Na fala de Ubiratan:

Na casa de meus bisavós, onde nasci, tínhamos um grande rádio Phillips a energia e bateria, tecnologia que meu Pai  trouxe de Natal na época da segunda guerra. Notava ele escutando noticiários que não eram estações locais sempre curioso comecei a sintonizar estas estações em ondas curtas. Então abriu-se um leque de informações, consegui sintonizar a BBC de Londres que Pai  escutava, rádio  Central de Moscou, rádio Tirana rádio Cairo, rádio Pequim radio Difusão e Televisão Francesa, rádio Havana Cuba, rádio Berlim Internacional, da Alemanha Oriental rádio Deutsche Welle, da Alemanha ocidental, rádio A Voz da América. Estas principais transmitiam programas em português em horários estabelecidos e nos inundavam de informações (...) (Ubiratan, entrevista escrita em fevereiro de 2012)

Com todas essas novas influências e com a possibilidade de maior acesso aos meios de informações, iniciou-se um novo processo.
Os jovens mantiveram conversas informais não só no Colégio Dom Vidal, mas também defronte a prefeitura e outros locais públicos: conversavam sobre a situação da cidade, política, cultura, música popular, cinema.
Com o tempo essas atividades (entre aspas) “espontâneas”, foram sendo organizadas de forma mais consciente e programada. As primeiras atividades realmente organizadas enquanto ação de um coletivo político em formação foram círculos de leitura. Liam em grupo jornais, revistas e livros.
Dentro do Colégio Dom Vital uns alunos começaram a influenciar os outros e, no final, praticamente todo ginásio estava envolvido com essa “nova mentalidade”.
No meio desses eventos, provavelmente em 1967, o jovem Edmilson se posiciona atrás de uma câmera fotográfica e eterniza a cena vista na IMAGEM 02 deste artigo. Na escadaria de acesso a quarta série ginasial do Colégio Dom Vital vemos: 1-Alcides, 2-Ubiratan, 3-Tupinambá, 4-Sebastião, 5-Marquinhos, 6-Chiquinho, 7-Joaquim,  8-Milton,  9-Helio, 10-Antonio, 11-Barreto, 12-Anchieta,  13-Ari,  14-Americo,  15-Odair,  16-Francimar, 17-Frei Dimas. Dentre eles Ubiratan, Ari, Barreto e Anchieta, juntamente com Edmilson que tirou a foto, eram da “linha de frente” das ações políticas que veremos mais a frente.

Todas essas novas relações e influências agitaram parte dessa juventude.  Foi tão forte a sede por informações, o contato com pensamentos de esquerda e a tentativa de serem protagonistas políticos do seu tempo, que chegaram a manter comunicações constantes com países do bloco comunista em plena ditadura militar no Brasil.
Entre essas comunicações (também trocadas com outros países como Estados Unidos, Egito, etc), a própria União Soviética foi destino e remetente de várias cartas e outros materiais, como calendários, selos e revistas. Abaixo, imagens de 1967, 1968 e 1969 demonstrando os materiais recebidas por Ubiratan Cortez pelos correios, da URSS.
 Imagem 03 – Material da URSS (1967)

Imagem 04 – Material da URSS (1968)

Imagem 05 – Correspondência da URSS (1969)



Se atentarmos ao texto dessa última carta, podemos imaginar o que pode ter pensado os agentes da ditadura militar brasileira. Passagens como“Agradecemos muito as suas palavras amistosas dirigidas ao nosso programa para o Brasil” ou “como prova de nossa amizade”, escritas e remetidas ao Brasil por Valentina Leonova de Moscou em janeiro de 1969, devem ter arrepiado os cabelos dos agentes da segurança pública da Paraíba.
Por conta dessas comunicações ocorreu o que possivelmente foi o primeiro inquérito policial movido pela ditadura em Catolé do Rocha...


Tivemos em 68 o primeiro IPM na nossa cidade um pessoal do exercito vindo do Tiro de Guerra de Patos ou do Grupamento de Engenharia de Caicó, indiciou eu, Benedito Fernandes, que viria a ser prefeito, uma irmã do próprio. Minha parte foi qual o motivo de eu ter correspondência com emissoras internacionais e o recebimento de revistas do bloco socialista. Quem comandava era um oficial jovem até simpático e eu disse que era estudante, tinha sede de saber e que procurava absorver todo o conhecimento de todos os países e também tomar conhecimento dos sistemas socialistas e comunistas que vigoravam entre as nações. Depois com nossa militância sabíamos que mais cedo ou mais tarde seríamos descobertos pela repressão (...) (Ubiratan, entrevista escrita em fevereiro de 2012,)


Paralelamente e em consequência disso tudo que estamos narrando, o movimento estudantil na cidade entrou em efervescência.
Entre 1965 e 1968 a agitação estudantil nacional chegou em Catolé do Rocha. O núcleo do movimento era o Centro Estudantil Catoleense. 
Articularam grêmios em vários colégios. Realizaram debates e seminários. Até o presidente da UBES (União Brasileira de Estudantes Secundaristas) passou por Catolé nessas épocas. Chegaram mesmo a fazer uma homenagem a Che Guevara no ano de sua morte.
Outras ações que realizaram: panfletagens (imprimiam manifesto na gráfica do Colégio Dom Vital, contestando a situação local e nacional, e durante a noite normalmente da sexta para o sábado, dia de feira, colocavam os panfletos por baixo das portas); só para termos uma ideia das pichações que faziam, existia uma na parede da delegacia com o dizer “costa é pior que bosta” (referindo-se ao presidente Costa e Silva que deu início a fase mais brutal da ditadura a partir do AI-5).
Na cultura organizaram apresentações de peças de teatro entre elas uma que foi escrita pelo garoto chamado Bolivar. Fundaram a biblioteca Castro Alves em 1967 com livros conseguidos em campanha. Realizaram exposições de pinturas de artistas locais. Entre outros exemplos de atividades de cunho cultural.
Essa agitação pública certamente pressionou os pais dos jovens. Por fim, toda a cidade acabou se envolvendo, no mínimo para criticar.
Um fato em específico demonstra muito bem o que estava ocorrendo em Catolé do Rocha. Num dia de sábado, durante a realização de um seminário (por volta de 1968), foi divulgada a notícia de uma tentativa de agressão ao Frei Marcelino, possivelmente por parte dos correligionários de José Sérgio Maia. Parte dos estudantes e da população local realizaram então uma passeata (as 21 horas, com provável participação de mais de mil pessoas), “(...) o povo de braços dados, cantando “caminhando e cantando, seguindo a canção” e gritando palavras de ordem.” (TRIBUNA, 1991). Esse trecho faz referência a música “Pra não dizer que não falei das flores” , de Geraldo Vandré.
A polícia local, na figura do Tenente Nilton, chamou alguns participantes da passeata para dar depoimentos na delegacia. Possivelmente ele comunicou o fato a Secretaria de Segurança Pública em João Pessoa e esses certamente passaram o comunicado para outros agentes da Ditadura Militar, talvez para o próprio exército. Ninguém foi processado por isso, mas certamente algumas das lideranças ficaram identificadas pelos órgãos da repressão.
Toda essa agitação política de uma forma ou de outra modificou a pequena cidade de Catolé do Rocha. Alguns jovens começaram a usar cabelo grande em uma cidade conservadora que não admitia essa estética para os homens: “Edmilson tinha o cabelo nos ombros (...) que ele passava na rua, o pessoal assobiava (?) de mulher.” (Luiz de Aquino, através do Jornal TRIBUNA, 1991). Alguns exibiam calças desbotadas.
Era então uma nova moral sendo imposta na cidade.

2 comentários:

  1. O texto acima é de autoria do historiador HERBERT DE ANDRADE OLIVEIRA, fruto de uma vasta pesquisa. Esse trabalho foi publicado pela primeira vez no blog www.historicospontos.blogspot.com

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  2. Ver a última parte desse texto: uma história bastante controversa sobre João Roberto, lider estudantil encontrado morto em 1969 no açude olho d'água em Catolé do Rocha. Na época, ele vinha sendo perseguido pela ditadura militar desde sua primeira prisão, no congresso da Une em Ibiúna/SP (68), quando também foi presa sua namorada, Maria do Socorro Moraes, hoje deputada federal Jô Moraes, pelo PCdoB de Minas Gerais.
    Acessar: www.historicospontos.blogspot.com

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