domingo, 25 de maio de 2014
...Bateu na fraqueza
Nos meus anos de universidade foram
vários os amigos que fiz; gente da melhor qualidade, quase sempre. Um desses,
evangélico convicto, desses que senta no carro e liga uma estação religiosa,
médico de trato humano diferenciado, era uma figura tão fina, mas tão fina, que
os seus antigos companheiros da instituição, na qual começara como mecânico, não
dispensavam os pedidos quase diários. Atendia mulher e marido, os filhos sem
dúvida alguma, os parentes e os aderentes, o papagaio, às vezes e até o
cachorro, se disso precisasse. Vivia sobrecarregado! Trabalhava no hospital e
fazia o mesmo no consultório, pagando, quase se pode dizer, para exercitar a
prática de Hipócrates.
Pela
forma como atendia os doentes,
pela disponibilidade no trato, fora designado para o ambulatório de
AIDS, uma
doença nova que vinha surgindo e que fizera a primeira vítima em
Pernambuco no
começo dos anos 80. Ai, coitado, amargou da banda podre! Acompanhei de
perto o
seu desempenho, porque era o seu chefe. Os pacientes notaram as suas
características
e o aperreavam muito. Era uma reação esperada de quem tinha a vida por
um fio.
Um desses, portador do vírus e ainda sem sintomas, sabendo de seu caso e
das
recomendações do médico em não manter contacto com ninguém, a não ser
com a
camisinha, implicou com ele: “Olhe doutor! Vou lhe dizer uma coisa: hei
de
disseminar a doença o mais que puder!”. E voltava à consulta relatando a
quantos
tinha contaminado. O meu amigo só não puxava os cabelos, porque sendo
negro os
tinha encarapinhados, colados à cabeça. Mas, ficou tão angustiado, que
me
procurou: “O que faço Pereira?”. E eu, cumprindo o que determina a lei,
mandei
informar à polícia, sob rigoroso segredo profissional. Mas, como já
esperava,
ficou o dito pelo não dito. Nunca recebi resposta do ofício que enviei,
com um alerta bem visível: "Implica na revelação de segredo médico."
Outro veio à consulta acompanhado da
mulher. Como já estava com a hipótese diagnóstica firmada, ouviu a pergunta que se fazia
a todos, antes que as características epidemiológicas da doença mudassem: “O
senhor teve algum contato homossexual?”. Foi quando a mulher interveio e
respondeu pelo cliente: “Não! Este homem é um galinha! Não pode passar um rabo
de saia que ele vai atrás!”. E o pobre o penitente concordava com tudo, sem
titubear. Mas, a esposa precisou ir ao banheiro e no intervalo o doente falou:
“Doutor! Eu sou macho! Mas, certa vez, passou um menino por mim e bateu na
fraqueza, eu tive uma relação homossexual!”. O banheiro foi providencial. E o
paciente submetido a tratamento obteve alta depois. Coitado! Ou coitada!
Era uma figura! Certa vez, um
professor mais velho passou mal e me pediram um médico para vê-lo. Designei o
nosso protagonista e ele: “Pereira! Não posso! Ele me chamou de negro safado,
quando eu era estudante!”. Pois, vai você, para que ele aprenda a respeitar o
ser humano. Ele foi, era uma crise hipertensiva, e a medicação tirou o doente
do sofrimento. Nunca mais ninguém se arvorou em tratá-lo mal!
Eu o tratava com toda deferência e
sabendo de seus conhecimentos bíblicos, sendo solteiro, mesmo que noivo há mais
de 30 anos, dizia que lhe conseguiria um lugar no clero católico, para que
entrasse como bispo ou em categoria semelhante. Ria com isso e se negava a
aceitar, tal as suas convicções. Certa vez, alegando que ele não aceitara a condição
de bispo católico, inventei que seria canonizado em vida e ocuparia um lugar de
destaque em igreja para tanto designada, devendo ser entronizado nu nesse altar
do imaginário.
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